Discurso de abertura de Lígia Kerr ao EPI 2021

Muito boa tarde Rosana Onocko, presidente da ABRASCO; Fernando Boing, presidente da comissão científica do congresso; Nísia Trindade, presidente da Fiocruz e recém nominada para a Academia Mundial de Ciências; Carmem Leitão, coordenadora da pós-graduação em saúde coletiva representando a Universidade Federal do Ceará; e Mirna Frota, coordenadora da Comissão de Programas de Pós Graduação Stricto Sensu do COFEN, e boa tarde a vocês, aqui presentes, que são uma das partes mais importantes da existência deste congresso. Nosso muito obrigada por participarem do 11º Congresso Brasileiro de Epidemiologia da ABRASCO.

Este congresso, que deveria ocorrer em Fortaleza e acontece hoje, virtualmente, vem sendo preparado há pelo menos 2 anos. Dois anos que promoveram enormes mudanças e que nos afetaram profundamente. A Covid-19 deixou um rastro de milhões de casos e de milhares de mortos no Brasil, e nos confrontamos com um enorme declínio econômico, a volta da fome, aumento desastroso do desemprego, e um cenário de ataques à ciência e à educação. Eu gostaria de usar alguns minutos para discutir o contexto em que este congresso ocorre.

A Covid-19 e 60% das doenças infecciosas das últimas décadas são produtos do capitalismo global e da globalização neoliberal que têm promovido a maior degradação ambiental do nosso planeta. Reconhecida como uma pandemia e uma emergência mundial desde dezembro de 2019, desde então, passamos a viver a mais grave crise sanitária do presente século. O Brasil foi um dos países mais afetados e que apresentou um dos maiores números de mortos, ofuscado apenas pelos EUA, cuja política de enfrentamento à epidemia foi praticamente inexistente, com políticas negacionista muito similares às do presidente brasileiro. E nosso país sofreu enormes transformações.

Na área da saúde, vivemos a pandemia com uma condução desastrosa. O Ministério da Saúde do Brasil passou por quatro ministros durante a pandemia e as lutas políticas foram contínuas, pois este governo não respeita a ciência, a educação, os direitos humanos, defende a ditadura e apoia a tortura. É um governo em cujo orçamento não cabe pobres, idosos, negros ou os povos indígenas. Usou a pandemia para deixar morrer milhares brasileiros. Estima-se que 75% dos brasileiros que morreram poderiam estar vivos com medidas de prevenção e vacinas. Estudos comprovam que, além do boicote à práticas de prevenção, o presidente, ativamente, concorreu para a disseminação da pandemia no país: rejeitou a gravidade do vírus, não providenciou testes, não organizou a atenção básica na pandemia, criou crises diplomáticas que interferiram na aquisição das vacinas, incentivou medicamentos sem comprovação científica e tentou impedir a implementação de medidas não farmacêuticas pelos governadores e prefeitos, permitindo que o SARS-Cov-2 se disseminasse por todo o país. Neste processo, o vírus se mostrou impiedoso, mas não totalmente democrático, atingindo, em especial, a população em maior vulnerabilidade, como os idosos, os negros, os pobres e as comunidades indígenas, curiosamente todos aqueles que o governo, manifestadamente, pública ou implicitamente, não inclui em seu orçamento.

Apesar da inépcia e de todos os desmandos, o governo reduziu sua resistência às vacinas ao perceber que não só perdia votos com esta prática, como poderia ter ganhos políticos com esta estratégia. Finalmente conseguimos vacinas, ainda que não na quantia, velocidade e na forma de operacionalização que sabemos fazer, e a vacinação avançou. E 11 meses após seu início, temos momentos de arrefecimento da pandemia de covid-19 no Brasil, ainda que a situação dos EUA e da Europa nos lembrem das consequências da liberação das máscaras e abertura total da economia neste momento. Entre atrasos, erros e suspeitas de corrupção investigadas pela CPI da COVID no Senado, alcançamos a casa dos 60% de brasileiros que receberam as duas doses de imunizante ou a dose única, e ultrapassamos até os EUA, que iniciou antes e com imunizante suficiente para vacinar mais de 2 vezes sua população. Tenho para mim que a falta de um sistema público de saúde como o SUS e o individualismo levado ao extremo, que não reconhece o bem público como um valor necessário, fez aquele país patinar na vacinação e apresentar, esta semana, cerca de 85 mil casos novos de COVID por dia.

Mas nossos desafios ainda são muitos! Cerca de 21 milhões de brasileiros que tomaram a primeira dose, ainda não tomaram sua segunda dose e não estão, portanto, adequadamente protegidos. Precisamos colocar o que sabemos em prática, fazer busca ativa destas pessoas. Sabemos quem são, onde moram e temos condições de trazê-los para as unidades de saúde ou ir ao encontro deles. Me emocionei com um vídeo de uma ambulância com profissionais do SUS percorrendo lentamente as ruas de um bairro periférico do RJ, à noite, chamando a população com um megafone para tomar a vacina ou a segunda dose atrasada.

O jornal New York Times enfatiza que a conquista das coberturas vacinais contra a COVID no Brasil contrasta com a forma ridícula com que Bolsonaro lidou com a pandemia. Mas relembra e reforça a extensão da confiança que nós brasileiros temos no nosso robusto sistema de saúde público – o SUS, e no histórico de sucesso e de respostas rápidas a crises que muitas vezes conseguimos dar. Vale lembrar nossa vitória contra a pólio, o sarampo, o H1N1, nosso programa de aids, que já foi modelo mundial, nossos esforços na redução da mortalidade infantil e mortalidade materna e em inúmeras outras ações que, mesmo com reveses e dificuldades enormes, nos enchem de orgulho. Todos sabemos que a pandemia seria ainda muito mais devastadora se não tivéssemos o SUS.

E mesmo depois de atingir o controle da pandemia, o SUS continuará sobrecarregado, lidando com as demandas de saúde represadas e com as sequelas da COVID-19. Por isto, nossa luta pela revogação da Emenda Constitucional que congelou os gastos públicos precisa ser incessante. Com todos os assédios que o SUS sofreu, ainda foi efetivo. A pequenez do atual governo ficará na sombra da grandeza do SUS.

Na economia a atuação do presidente não foi diferente. A total falta de condução por parte do governante maior no nosso país permitiu o agravamento da crise socioeconômica que havia sido imposta sobre o nosso país com o golpe parlamentar de 2016, e aprofundou ainda mais as desigualdades já existentes. O Atlas das situações alimentares no Brasil deixa claro que no período entre 2004 e 2013 a fome e o risco de fome apresentaram uma tendência de queda, enquanto que entre 2017-2018 se observa um aumento expressivo dessas duas situações.

Hoje, se de um lado temos famílias em desespero, buscando restos de alimentos no lixo ou comprando ossos para cozinhar; temos cerca de 15 milhões de desempregados no país; mais uns 50 milhões em trabalhos informais e outros novos empregos com salários menores, de outro lado, assistimos a concentração de renda ser incrementada durante a pandemia, quando os 1% dos brasileiros mais ricos se tornaram donos de metade das riquezas do país. Só perdemos para a Rússia neste quesito. São triste recordes que nosso país insiste em ficar ganhando na rabeira do que tem de pior.

Estes cenários antagônicos entre ricos e pobres marcam o crescimento do fosso que se abriu entre estes extremos e a enorme distância não só de renda, mas de desempenho e oportunidades entre a base e o topo da nossa atual pirâmide de renda.

O mercado de trabalho para boa parte dos trabalhadores e trabalhadoras encolheu, e milhares passaram a depender de programas temporários de transferência de recursos por parte do governo. Este recurso, inicialmente estipulado em 200 reais, foi considerado tão ínfimo que até o congresso, poucas vezes amigável aos trabalhadores, aumentou seu valor em 3 vezes.

Na educação o caos não foi menor. Os ataques do governo à ciência, às universidades e às agências de fomento são impiedosos. “O governo Bolsonaro parece uma empresa de demolição”, disse uma cientista política.

Os orçamentos da Capes e do CNPq caíram 73%, desde 2015, e juntas, estas duas agências tiveram uma redução real de quase 10 bilhões de reais em seus orçamentos. Para este, o orçamento empenhado para os dois institutos que fomentam a pesquisa no Brasil é de apenas 3,6 bilhões, quase ¼ daquele de 2015.

Em três anos, a política de educação bolsonarista teve quatro ministros diferentes, um dos quais criticava a “balbúrdia” produzidas pelas universidades. Observou-se uma total ausência de coordenação da crise da educação durante a pandemia, além do contingenciamento de recursos das universidades, a indicação de reitores não representativos da comunidade e os cortes de verbas para o MEC, que incluiu o veto presidencial à destinação de 3 bilhões e meio de reais para um projeto que daria internet grátis a estudantes e professores, que de tão revoltante foi revertido pela câmara.

Estes dias, assistimos mais uma crise no Enem, cuja prova foi acusada pelo governo de ser contaminada por ideologia. Bolsonaro prometeu rever a prova antes da aplicação a fim de filtrar as chamadas “ideologias”, e assim o fez, e na sua forma habitual: colocou a polícia federal e os militares para intimidar os técnicos, realizar assédio moral, gerando incertezas sobre a segurança e a inviolabilidade das questões, fatos que ocasionaram o pedido de exoneração de 37 servidores do Inep a menos de duas semanas do Enem. No discurso na câmara, a deputada federal Natália Bonavides observou que, de fato, agora o Enem passou a ter mesmo a cara deste governo: é o Enem mais excludente, com o menor número de inscrições e queda drástica no número de estudantes de escola pública e de estudantes negros inscritos. A consequência mais grave é a redução drástica do acesso destes alunos às universidades públicas, tornando ainda maior o contingente de excluídos do ensino universitário. Mas, nas lutas, algumas vitórias. A prova do Enem de ontem mostra que a resistência dos servidores foi vencedora: o tema da redação foi “Invisibilidade e registro civil: garantia de acesso à cidadania no Brasil”! Não vamos nos esquecer de cada vitória alcançada neste país!

Lidar com o presidente Bolsonaro não tem sido uma tarefa nada fácil. Mas a parte boa é que nós não desistimos de resistir. Foram muitos os setores da sociedade brasileira que resistiram e ainda estão resistindo. E nesta resistência, a ABRASCO tem tido um papel fundamental e nos deu forças para continuar e realizar este congresso. A ABRASCO fez um trabalho de luta intenso dirigido pela ex-presidente, Gulnar de Azevedo e Silva, e agora continuado pela atual presidente Rosana Onoko Campos. Um verdadeiro conjunto de pesquisadores da epidemiologia, das ciências sociais e da área de política, planejamento e gestão foram mobilizados e se colocaram à disposição da entidade e trabalharam com afinco durante a pandemia. Foi elaborado um Plano de Enfrentamento da COVID-19 em conjunto com diferentes instituições e áreas do conhecimento, contextualizando a pandemia social, econômica e politicamente, buscando formas de melhor enfrentá-la, e quando e como propor medidas de controle. Discutimos o papel do SUS no contexto do país, a efetividade das medidas não farmacêuticas, as vacinas, o impacto na saúde das populações em maior vulnerabilidade, o impacto da pandemia no trabalho, os retrocessos sociais e políticos impostos à sociedade brasileira e suas consequências sócio, econômico e políticas no país e no SUS, durante e depois da pandemia. Vamos discutir e aprofundar estes e muitos outros tópicos que serão temas do programa científico do EPI2021. Também faremos uma homenagem carinhosa a todos os ex-presidentes dos 10 congressos de epidemiologia anteriores. Eles serão responsáveis pela apresentação de cada uma das 10 conferências fantásticas que ocorrerão durante o nosso congresso.

Para finalizar, eu li um texto de uma jornalista que escreveu que, no futuro, seria mais fácil nos prepararmos para um vírus parecido com o atual: precisaríamos de testes rápidos, formas velozes de criar vacinas, meios mais práticos para declarar quarentenas e evitar o contato com os outros. Segundo ela, essas seriam as lições principais do atual coronavírus. Eu discordo. Não podemos negar o impacto dos enormes avanços da ciência, da efetividade das medidas não farmacêuticas, quando aplicadas corretamente, no desenvolvimento das vacinas em tempo recorde, na rapidez com que avançamos na assistência aos doentes graves, no rechaço de medicamentos ineficazes, e na luta contra as Fakes News. Mas se não buscarmos as reais causas de porque epidemias como AIDS, MERS, SARS, ZIKA, CHIKUNGUNYA, COVID-19 vem ocorrendo, vamos continuar a conviver, ou nos destruir de vez, com novas pandemias.
Nunca mais o Brasil ou o mundo serão os mesmos depois da COVID. Cabe a nós saber que mundo e que Brasil queremos. Neste congresso, vamos nos fortalecer nos alimentando das inúmeras “balbúrdias” que aqui serão apresentadas. E continuar lutando contra o conformismo, contra a injustiça social e contra a opressão. E que possamos reinventar novos caminhos que reduzam o sofrimento de toda a humanidade.

Agradecemos a todos que ajudaram a construir este congresso e a presença de todos. Sejam bem-vindos ao 11º Congresso Brasileiro de Epidemiologia!

Lígia Kerr é professora da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Ceará e presidente do 11º Congresso Brasileiro de Epidemiologia

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